O lado perverso da globalização sobre a visão da obra “O Jardineiro Fiel”
O filme “O Jardineiro Fiel” mostra a
ação diplomática de países ocidentais no mais pobre continente terrestre e as
relações econômicas inseridas dentro da atuação diplomática desses países, em
especial o da Inglaterra. Fazendo um paralelo com o livro “A sociedade em rede”
revela os fluxos de influência que se estabelecem entre as mais variadas
regiões do globo e como todo contexto é submetido, ou até mesmo reduzido, a uma
realidade ditada por padrões econômicos em que as populações das regiões pobres
dessa enorme rede, em especial as africanas, são rebaixadas a categoria de
experimentos farmacêuticos por empresas que detém a primazia política e influenciam
a atuação dos Estados mais fortes em área frágeis pela mera racionalidade
econômica e maximização de ganhos.
O filme revela que mesmo sobre todo
o ufanismo e idéia de melhorias sobre o passado, o espírito da nossa época,
sobre o signo de uma globalização radical e até mesmo inevitável, gera ao mundo
contradições e problemas que não fogem da realidade passada, em especial ao
processo de colonização e rapina por parte das nações ocidentais.
É
nesse contexto que é estabelecido a relação amorosa de um casal composto por um
diplomata inglês com uma ativista social, desenrolando uma historia que nos
instiga a pensar qual é o papel do ser humano frente à degradação física,
cultural e moral da população de um continente empobrecido por um passado
histórico marcado pelas chagas da máquina colonizadora européia, doenças
tropicais e rapina das elites nacionais e de grupos insurgentes. É possível que
em uma época em que a “rede” nos proporciona informações a um nível instantâneo
com a capacidade das mais variadas fontes e opiniões seja possível ao homem ser
inteiramente condicionado a própria estrutura dessa “rede”? A personagem Tessa
é prova da capacidade dessa mesma “rede” em produzir indivíduos com capacidade
de questionamento intelectual que vão além do que a grande mídia nos
proporciona:
-
Tessa distinguia absolutamente entre a dor observada e a dor compartilhada. A
dor observada é a dor jornalística. É a dor da televisão e passa assim que você
desliga o abominável aparelho. Aqueles que observam e nada fazem a respeito, na
visão dela, não era nada melhores do que aqueles que a infligiam. Eram os maus
samaritanos. (LE CARRÉ, 2006, P.150)
A capacidade de Tessa em não se
adequar aos padrões que a realidade diplomática impunha e questionar a atuação
dessas missões bem como o de empresas farmacêuticas nos leva ao questionamento,
até que ponto os fins justificam os meios? Não se questiona a obtenção dos
lucros, mas é possível ser conivente com a exploração de seres humanos de forma
tão brutal e terrível? O filme torna evidente que os próprios Estados não
cumprem os compromissos que ratificaram na própria carta da ONU, uma vez que
apóiam a atuação de empresas de forma a violarem a própria carta dos direitos
universais do homem.
Essa rede transnacional de
informação e intercâmbio cultual gera sua própria rede de excluídos, uma vez
que grande parte da população dos países pobres não tem acesso às facilidades
decorrentes da vida globalizada e do livre mercado. São esses mesmos seres
marginalizados do processo que sofrem todas as implicações negativas decorrentes
da rede, pois uma vez que são interligados todos os setores da sociedade, a
parte corrupta e ilegal torna-se constituinte dessa “malha” de relações. É
nesse contexto que a população carente da África torna-se cobaia de
experimentos farmacêuticos de grandes corporações sem ao menos saber que estão
sendo tratados por medicamentos experimentais, pois são considerados seres descartáveis
por esses grupos que concentram uma grande capacidade econômica e política.
- Tessa acreditava que a busca
irresponsável de lucro pelas corporações estava destruindo o globo e o mundo
emergente em particular. À guisa de investimento, o capital do Ocidente
arruinava o mio ambiente nativo e favorecia a ascensão das cleptocracias. Esse
era o argumento dela. Dificilmente chega a ser radical nos dias de hoje. Já
ouvi amplamente discutido nos corredores da comunidade internacional. Até mesmo
em minha própria comissão. (LE CARRÉ, 2006, P.163)
Esses questionamentos levaram a
personagem Tessa a um trágico destino desencadeando sua morte, aparentemente
ocasionada por criminosos comuns, mas que, na verdade, havia sido encomendada
pelos setores sociais que sua pesquisa procurava incriminar devido o abuso a
população africana. Esse fato torna evidente que a corrupção esta de uma maneira
tão arraigada nas estruturas dessa “rede” que os indivíduos que vão contra a
postura ou ação considerada adequada são eliminados desse processo. Apesar de
ser inglesa e rica, Tessa questionou a ordem vigente e obteve o mesmo destino
que a população africana usuária dos medicamentos, uma morte nebulosa e sem
explicação aparente.
A morte brutal de sua esposa faz com
que Justin Quayle procure uma resposta a todos os fatos ocorridos e se depara
com uma realidade perversa, em que a morte da sua esposa foi um fato racional
dentro de um sistema de interesses calcados no lucro sem a mínima preocupação
com o caráter humano de toda a realidade em volta.
Quayle
inicia uma investigação própria para recuperar a memória da sua falecida esposa
e encontra uma rede de interesses por de trás de toda missa diplomática inglesa
em território africano em que a população é transformada em mercadoria para a
maximização de ganhos. Por questionar a realidade vigente o próprio diplomata
perde todo seu prestigio dentro de sua própria sociedade e passa a viajar com
um passaporte falso para não acionar as próprias pessoas para quem trabalhava.
É importante destacar que essa rede de informações, ao conectar o mundo em um
mesmo sistema, classifica o individuo ao seu bel prazer, tornando, em questão
de segundos, uma figura social importante em um foragido.
Todas as relações de poder e
corrupção que Tessa investigava tornam-se clara e Justin percebe o ato de
coragem de sua mulher ao questionar toda a trama de interesses que se deitavam sobre
a suposta ação humanitária de uma empresa farmacêutica em solo africano. Torna-se
claro também toda a conspiração feita sobre a figura de sua mulher para que seu
marido não só questionasse seu trabalho humanitário, mas também sua fidelidade
conjugal. O personagem de Justin ao descobrir todo esse processo é tomado por
uma grande melancolia ao realizar que sua mulher e filho haviam sido mortos por
um sistema em que ele não só estava inserido, mas ingenuamente defendia. Até
mesmo o produto que utilizava para cultivar seu jardim era produzido pela
empresa que havia dado fim a sua família. Talvez, em um ato de coragem ou
desespero, o até então diplomata inglês decide abandonar o avião que o levaria
para fora da África e decide morrer em um lugar deserto, desiludido pela
própria realidade perversa que havia descoberto.
O filme deixa claro que essa “rede”
proposta pelo livro “A sociedade em rede” é um fenômeno fruto dos avanços
tecnológico e da financeirização da economia como um fator que engloba todos os
mercados mundiais. É uma estrutura que determina o comportamento do indivíduo,
mas questionamos até que ponto podemos permitir que os fluxos de interesses e
poder ditem as regras de nossas sociedades enquanto assistimos a tudo sem o
menor questionamento? Não devemos permitir que essa rede transforme o ser
humano no simples homem econômico, sujeito às flutuações do capital e aos
interesses de grandes corporações econômicas. É preciso criar uma noção de
social nessa “rede” e mostrar o lado cruel que essa realidade vem
proporcionando aos indivíduos que não estão inseridos nesse contexto. Apesar de
ser uma obra de ficção o poder das grandes corporações é um fenômeno que deve
ser discutido, bem como se pensar até que ponto o desenvolvimento de uma
civilização pode comprometer a vida de outros povos.
Referências
Bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A SOCIEDADE EM REDE. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
Lé
Carré, John. O Jardineiro Fiel. 4º Ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
O
Jardineiro Fiel. Direção de Fernando Meirelles
Sem,
Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São
Paulo: Cia. Das Letras, 2000.