quarta-feira, 20 de junho de 2012

O lado perverso da globalização sobre a visão da obra “O Jardineiro Fiel”


            O filme “O Jardineiro Fiel” mostra a ação diplomática de países ocidentais no mais pobre continente terrestre e as relações econômicas inseridas dentro da atuação diplomática desses países, em especial o da Inglaterra. Fazendo um paralelo com o livro “A sociedade em rede” revela os fluxos de influência que se estabelecem entre as mais variadas regiões do globo e como todo contexto é submetido, ou até mesmo reduzido, a uma realidade ditada por padrões econômicos em que as populações das regiões pobres dessa enorme rede, em especial as africanas, são rebaixadas a categoria de experimentos farmacêuticos por empresas que detém a primazia política e influenciam a atuação dos Estados mais fortes em área frágeis pela mera racionalidade econômica e maximização de ganhos.
            O filme revela que mesmo sobre todo o ufanismo e idéia de melhorias sobre o passado, o espírito da nossa época, sobre o signo de uma globalização radical e até mesmo inevitável, gera ao mundo contradições e problemas que não fogem da realidade passada, em especial ao processo de colonização e rapina por parte das nações ocidentais.
            É nesse contexto que é estabelecido a relação amorosa de um casal composto por um diplomata inglês com uma ativista social, desenrolando uma historia que nos instiga a pensar qual é o papel do ser humano frente à degradação física, cultural e moral da população de um continente empobrecido por um passado histórico marcado pelas chagas da máquina colonizadora européia, doenças tropicais e rapina das elites nacionais e de grupos insurgentes. É possível que em uma época em que a “rede” nos proporciona informações a um nível instantâneo com a capacidade das mais variadas fontes e opiniões seja possível ao homem ser inteiramente condicionado a própria estrutura dessa “rede”? A personagem Tessa é prova da capacidade dessa mesma “rede” em produzir indivíduos com capacidade de questionamento intelectual que vão além do que a grande mídia nos proporciona:


 - Tessa distinguia absolutamente entre a dor observada e a dor compartilhada. A dor observada é a dor jornalística. É a dor da televisão e passa assim que você desliga o abominável aparelho. Aqueles que observam e nada fazem a respeito, na visão dela, não era nada melhores do que aqueles que a infligiam. Eram os maus samaritanos. (LE CARRÉ, 2006, P.150)

            A capacidade de Tessa em não se adequar aos padrões que a realidade diplomática impunha e questionar a atuação dessas missões bem como o de empresas farmacêuticas nos leva ao questionamento, até que ponto os fins justificam os meios? Não se questiona a obtenção dos lucros, mas é possível ser conivente com a exploração de seres humanos de forma tão brutal e terrível? O filme torna evidente que os próprios Estados não cumprem os compromissos que ratificaram na própria carta da ONU, uma vez que apóiam a atuação de empresas de forma a violarem a própria carta dos direitos universais do homem.
            Essa rede transnacional de informação e intercâmbio cultual gera sua própria rede de excluídos, uma vez que grande parte da população dos países pobres não tem acesso às facilidades decorrentes da vida globalizada e do livre mercado. São esses mesmos seres marginalizados do processo que sofrem todas as implicações negativas decorrentes da rede, pois uma vez que são interligados todos os setores da sociedade, a parte corrupta e ilegal torna-se constituinte dessa “malha” de relações. É nesse contexto que a população carente da África torna-se cobaia de experimentos farmacêuticos de grandes corporações sem ao menos saber que estão sendo tratados por medicamentos experimentais, pois são considerados seres descartáveis por esses grupos que concentram uma grande capacidade econômica e política.


- Tessa acreditava que a busca irresponsável de lucro pelas corporações estava destruindo o globo e o mundo emergente em particular. À guisa de investimento, o capital do Ocidente arruinava o mio ambiente nativo e favorecia a ascensão das cleptocracias. Esse era o argumento dela. Dificilmente chega a ser radical nos dias de hoje. Já ouvi amplamente discutido nos corredores da comunidade internacional. Até mesmo em minha própria comissão. (LE CARRÉ, 2006, P.163)  


            Esses questionamentos levaram a personagem Tessa a um trágico destino desencadeando sua morte, aparentemente ocasionada por criminosos comuns, mas que, na verdade, havia sido encomendada pelos setores sociais que sua pesquisa procurava incriminar devido o abuso a população africana. Esse fato torna evidente que a corrupção esta de uma maneira tão arraigada nas estruturas dessa “rede” que os indivíduos que vão contra a postura ou ação considerada adequada são eliminados desse processo. Apesar de ser inglesa e rica, Tessa questionou a ordem vigente e obteve o mesmo destino que a população africana usuária dos medicamentos, uma morte nebulosa e sem explicação aparente.
            A morte brutal de sua esposa faz com que Justin Quayle procure uma resposta a todos os fatos ocorridos e se depara com uma realidade perversa, em que a morte da sua esposa foi um fato racional dentro de um sistema de interesses calcados no lucro sem a mínima preocupação com o caráter humano de toda a realidade em volta.
Quayle inicia uma investigação própria para recuperar a memória da sua falecida esposa e encontra uma rede de interesses por de trás de toda missa diplomática inglesa em território africano em que a população é transformada em mercadoria para a maximização de ganhos. Por questionar a realidade vigente o próprio diplomata perde todo seu prestigio dentro de sua própria sociedade e passa a viajar com um passaporte falso para não acionar as próprias pessoas para quem trabalhava. É importante destacar que essa rede de informações, ao conectar o mundo em um mesmo sistema, classifica o individuo ao seu bel prazer, tornando, em questão de segundos, uma figura social importante em um foragido.
            Todas as relações de poder e corrupção que Tessa investigava tornam-se clara e Justin percebe o ato de coragem de sua mulher ao questionar toda a trama de interesses que se deitavam sobre a suposta ação humanitária de uma empresa farmacêutica em solo africano. Torna-se claro também toda a conspiração feita sobre a figura de sua mulher para que seu marido não só questionasse seu trabalho humanitário, mas também sua fidelidade conjugal. O personagem de Justin ao descobrir todo esse processo é tomado por uma grande melancolia ao realizar que sua mulher e filho haviam sido mortos por um sistema em que ele não só estava inserido, mas ingenuamente defendia. Até mesmo o produto que utilizava para cultivar seu jardim era produzido pela empresa que havia dado fim a sua família. Talvez, em um ato de coragem ou desespero, o até então diplomata inglês decide abandonar o avião que o levaria para fora da África e decide morrer em um lugar deserto, desiludido pela própria realidade perversa que havia descoberto.
            O filme deixa claro que essa “rede” proposta pelo livro “A sociedade em rede” é um fenômeno fruto dos avanços tecnológico e da financeirização da economia como um fator que engloba todos os mercados mundiais. É uma estrutura que determina o comportamento do indivíduo, mas questionamos até que ponto podemos permitir que os fluxos de interesses e poder ditem as regras de nossas sociedades enquanto assistimos a tudo sem o menor questionamento? Não devemos permitir que essa rede transforme o ser humano no simples homem econômico, sujeito às flutuações do capital e aos interesses de grandes corporações econômicas. É preciso criar uma noção de social nessa “rede” e mostrar o lado cruel que essa realidade vem proporcionando aos indivíduos que não estão inseridos nesse contexto. Apesar de ser uma obra de ficção o poder das grandes corporações é um fenômeno que deve ser discutido, bem como se pensar até que ponto o desenvolvimento de uma civilização pode comprometer a vida de outros povos.


Referências Bibliográficas


CASTELLS, Manuel. A SOCIEDADE EM REDE. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Lé Carré, John. O Jardineiro Fiel. 4º Ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

O Jardineiro Fiel. Direção de Fernando Meirelles

Sem, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000.